domingo, 15 de maio de 2011

Lançamento de meu novo livro: Novenário de Espinhos

CADERNO CA (Parte LXXX)

Uma página ao amor e à paixão

Antes de ti, amada Biscuí, havia poucos, raríssimos tons azuis no céu perdido dos meus olhos; bem como um raro, e evanescente, brilho franco sob a forma de sorriso em meus lábios contritos.
Quando dezoito chegou (mais precisamente, a noite de 18 de julho de 1982), nos salões do Alcione Clube, o azul fez-se manto, e o sorriso habitou definitivamente em mim. Sant’Anna foi a nossa padroeira. No solo sagrado do meu chão natal, a decantada Santana do Acaraú, Licânia literária minha.
Se por obra e arte dos teus olhos negros e dos teus lábios carnudos?
Disso eu não tenho a menor dúvida. Repito, a menor das dúvidas.
Então, a partir daquela noite-baile, a atração que nos chamava e os olhares furtivos que trocávamos transformaram-se no sagrado fogo do nosso namoro.
Bem mais de perto, logo percebi (mergulhado no poço da paixão, onde nada se vê, nem se quer ver), e colhi uma conclusão: a tua pupila, minha Biscuí, detinha o mapa da minha loucura, bendita e dadivosa sandice.
Lá mergulhei e, de lá, peço aos céus, aos deuses enfim, não quero mais sair.
Em poucos encontros — raros, contudo eternos quando acompanhados pelo relógio dos enamorados —, o que era atrativo fez-se encantamento. O que me parecia bonito revelou-se sublime, singular, ímpar. O que carregava a coroa- espinho da dúvida abençoou-nos com o vinho da eternidade.
Se havíamos sido feitos um para outro?!
Não sei responder. Certas perguntas, Biscuí, devem ser dirigidas diretamente a Deus.
E os dezoitos se sucederam. No início, sob a forma de meses; depois, em anos. Em cada um, a comemoração de um novo marco. Dezoito transmudou-se, afinal, em símbolo numérico, aliança viva.
Os meus olhos, cegos por ti, não achavam brilho nem graça em outros olhos. As minhas mãos, acostumadas à tua carícia e zelo, não achavam ternura nem encanto em outras mãos. O nome disso?! Só pode ser amor, só pode ser paixão.
No teu natalício, aos 21 de setembro de 1985, o noivado compromisso. Um anel correu da minha mão para um dos teus dedos da mão direita. Selo para todo o sempre.
Em 1986, aos 18 de dezembro (somente poderia ser no dia 18), a nossa união, sob a bênção de Cristo-Rei. Comunhão universal de bens, projetos e sonhos. Para todos os séculos. Na alegria e na doença. Na tristeza e na saúde. Amando-te e respeitando-te, sendo amado e respeitado.
O nosso primeiro ninho, que montamos e ocupamos, Biscuí, deu-se em Mossoró. Dentro dele, um calor humano que suplantava o do astro-rei.
Fomos abençoados com a guarda de nosso primogênito: Artur. Um rei para venerar a rainha Luzia. Anos depois, a chegada do segundo fruto: Mateus. Mais um discípulo teu. Na tentativa da nossa filha, um filho-anjo, caído do Paraíso, e amparado por teus braços dadivosos: o temporão Lucas Francisco. Puro, santo, milagroso e bom.
Hoje, neste maio em que me encontro distante, as palavras revelam-se impotentes para declarar a ti, querida, o meu amor, a minha profunda paixão.
Uma coisa eu sempre tenho certeza: onde eu estiver, como eu estiver, com quem estiver... tu estará comigo. A zelar por meus passos, a me cobrir com a tua graça, a me banhar com as tuas preces, Biscuí.
Em dezembro próximo, comemoraremos as nossas Bodas de Prata. Vinte e cinco anos de comunhão carnal e espiritual. Se me arrependi?!... Ninguém, amada minha, se arrepende do prêmio venturoso do amor e da paixão.
Eu te amo, Biscuí. Eu te amo.

Clauder Arcanjo — Escritor

Rio de Mossoró ao Pantanal





Clauder Arcanjo
Para o poeta Manoel de Barros

Um rio arcanjo e passarinheiro
A desvirginar as tiranias dos discursos
A dar cor ao cinzeiro das certezas
A poetizar a terra e os homens
A plantar batatas nos pés de dogmas
A respingar de arco-íris o choro
Dos abandonados, dos ribeirinhos
Das posses, dos excomungados da alegria...
Um rio que nasce no semiárido de Mossoró
E se pinta, e borda, no cardume do Pantanal...
Com as (mil)cores telúricas do poeta sem igual —
Manoel: de barro, de água, de fogo, de sol e sal.
Melhor: Manoel de Barros. Sim, de Barros! Tal e qual.





Continhos para oito de maio

Magérrima



Saiote curto, pernas longas, ossos salientes, cara seca, poucas carnes na retaguarda.
A entrada na alcova. Mão no interruptor. Luz fraca. Corpos em vulto.
Na festa dos afagos, a transmutação. Beijos, suspiros lânguidos, língua morna e espevitada. O esquecimento da, antes, insossa magérrima. O surgir, no escuro do leito, do espectro de uma dadivosa sultana.








Maldita Comédia

Nascido, fez-se retirante. As brincadeiras com os gravetos das estradas. Acredita que foi o seu Céu.
Galalau, dando no couro para o trabalho, fez-se roceiro dos coronéis da caatinga. Um Purgatório sem fim. Grande de não acabar mais, como o mar que ele viu um dia.
Hoje, alquebrado, velho, abandonado no fundo de uma rede mijada, a doença braba a lhe roer os bofes, sonha com o fim. Topa até o Inferno.






Malvada




— Malvada! Chegou, mexeu, levou meus troços, usufruiu de mim, meteu-se comigo por dentro da noite. Uma malvada, compadre.
— Entendo, compadre.
— Malvada! Enroscou-se feito uma cobra dentro dos meus bofes, que fiquei feito um cabra morto, abestalhado pelo seu veneno. Uma malvada, compadre.
— Entendo, compadre.
— Malvada! Fez um fuzuê tão grande com meu juízo, que esqueci tudo: mulher, trabalho, a maledicência da cidade, os bons modos... Aos gritos dentro da noite. Uma malvada, compadre.
— Entendo, compadre.
— Malvada! Malvada!... Fez isso tudo e não volta, compadre. Uma malvada, compadre.
— ...



Contos da Montanha – um reino maravilhoso da prosa de Torga

Autores & Obras
Por CARLOS MEIRELES
Bibliófilo

Contos da Montanha – um reino maravilhoso da prosa de Torga


“O homem pode aguentar enormidades concretas, desde que sonhe alívios abstratos.
O que ele não pode viver é sem nenhuma esperança.
Mesmo que seja só a esperança de fugir...”.
(Miguel Torga – Diário V)

Adolfo Correia da Rocha nasce aos 12 de agosto de 1907, em S. Martinho da Anta, Trás-os-Montes, Portugal. Será universalmente conhecido pelo seu pseudônimo Miguel Torga, que passa a adotar a partir do seu livro A Terceira Voz (1934). Não escolhe o nome por acaso: Miguel, reverência a Cervantes e Unamuno; Torga, ou urze, uma planta bravia, humilde, espontânea, correspondente no reino vegetal da força que será este poeta e prosador. Miguel Torga – será esse o seu nome para a escrita e para o convívio com os amigos e tudo o mais.
Filho de gente humilde e do campo, nunca se desliga das raízes – família, meio rural, natureza que o circunda. Mesmo quando não referidas, as figuras do pai, da mãe, do professor primário, das fragas, das serranias, da magreza da terra, do suor de seu povo para dela arrancar o pão de cada dia, dos monumentos megalíticos em que a região é rica, estão sempre presentes em todos os seus escritos.
Emigra para o Brasil aos treze anos, trabalha na fazenda de um tio na dureza da capina do café. O tio percebe seus dotes intelectuais e investe em seus estudos. Retorna a Portugal em 1925, surge o primeiro livro – Ansiedade (1928), poesia. Passa a cursar Medicina, com a ajuda do tio. Torga sempre foi homem arredio, distante, averso aos rótulos. Uma parcela de distanciamento dos homens, timidez daqueles vindos dos meios humildes. Certa vez, bradou: “A desgraça é que não me deixam estar só, pensar só, sentir só”. A morte e a solidão, presenças constantes em sua obra.
Desde os primeiros escritos, a busca da perfeição e da verdade, beirando as raias da loucura: “Que cada frase em vez de um habilidoso disfarce, fosse uma sedução (...) e um ato sem subterfúgios. Para tanto limpo-a escrupulosamente de todas as impurezas e ambiguidades”. Formado em Medicina, monta consultório em Coimbra. Imensas consultas gratuitas. Perde-se em conversas longas se os pacientes são humildes ou de sua região. Contumaz catador de casos, alimentando sua prosa. Viajante incansável por todo o Portugal e estrangeiro, nunca deixa de ver o mundo a partir de Trás-os-Montes, vendo sinais de sua província em toda parte. “O universal é o local sem paredes”. Enaltecia sua província natal como terra de Deus e dos deuses.
Homem de uma fibra altiva, paladino dos direitos humanos, imantado na tríade: respeito, fraternidade e liberdade, para todos. Não dá autógrafos nos seus livros para que “o leitor esteja livre para julgar o texto”. Também não poupa crítica a certas elites bem pensantes de serviço, atribuindo a estas a ausência da menor dúvida. Esta sua impaciência com os intelectuais é compensada com o contato com o seu povo: “sem esperança nos letrados, (...) junto dos analfabetos encontro ainda o riso, a indignação e o espanto...”.
Poesias, romance, diários, teatro... Escritor de uma riqueza incomensurável, produção vasta e variada, detentor de um respeito ao ato de escrever, Torga foi também grande poeta, “preferi às vezes pôr um poema onde deveria estar um insulto”, lança seu livro de contos – Contos da Montanha – em 1941. Estórias (ou histórias?) daquele cuja “fraqueza maior é não poder desprezar ninguém, mesmo os próprios inimigos... Sofro por eles... Somos todos elos de uma mesma corrente, e é por elos ferrugentos que ela pode quebrar...”. Chama atenção para seu povo e sua província não com uma prosa messiânica, combativa e panfletária, prefere o dourado atraente do imã literário. Emociona, desperta para a dor dos que penam nas fragas das montanhas portuguesas, chamando atenção para o que de errado lhe parecia existir à sua volta, mas faz isto brindando-nos com urzes literárias infestadas de contos em forma de flor. Chocou-me o contraste: o belo na dor. Contos como “A Maria Lionça”, “A vindima”, “O desamparo de S. Frutuoso” ..., é quase impossível não relê-los, surpreso e conquistado pela urdidura seca e cativante do grande contista. Vê-se em cada um deles a marca daquele que, em uma nota do seu Diário, confessou: “Horas a fio a escrever. Ou melhor: a remendar textos velhos. Sou assim: tenho de deixar a prosa e os versos em repouso durante algum tempo para que assentem e possa então ver-lhes os aleijões”. Nós, leitores, somos apresentados apenas às gemas deste bateador incansável dos rios das palavras.
Vejo no conto o cume das suas habilidades como escritor. Pico de onde vê, e relata, os dramas da vida rural, da sua amada e querida região montanhosa, levados ao mais alto panteão literário. Torga, nos contos, alcança a perfeição a que todo grande contista se propõe: trama arguta; descrição sintética onde nada excede ou falta, feita com cinzel de artista; fechamento da estória com o quê da surpresa, da graça irônica e do imponderável. Quando se lê Torga, entende-se o valor de um clássico, passa-se a ser transmontano por adoção e, principalmente, queda-se apaixonado por este artífice da palavra. É impossível passar incólume por seus escritos.
Em 1944, surge outra coletânea de contos ambientados em sua região – Novos Contos da Montanha. Neles, novamente a presença constante do poeta lírico da terra, do homem, do eu, o proseador culto, provocante, comunicativo, tirando ouro de pedra tosca, com o seu manejar característico com a fina ironia. A eterna busca de ser “hálito de comunhão/ do mundo, da humanidade”. Como disse Vitorino Nemésio, em seu poema “O poeta é um mostrador”, Torga sabe que “tal numa ostra/ se esconde como lágrima uma pérola”.
Em cada novo lançamento, Torga passava, cada vez mais, a ser respeitado como escritor. Hoje, seus escritos integram várias antologias ao lado dos grandes nomes da literatura mundial. Foi escritor acima dos prêmios, inclusive do Nobel, para o qual seu nome foi proposto em 1960, sem êxito, possivelmente por interferências do poder de então. Voltaria a ser lembrado anos mais tarde, não lhe sendo atribuído como se sabe.
Detentor de uma capacidade criadora inabalável, Torga não foi homem de escola, era um independente no mundo literário. E assim manter-se-á, produzindo até próximo da morte, que irá ocorrer em 1995. Morte?!... Desculpem-me, diletos leitores, quem produziu escritos imortais nunca será levado à Mansão dos Mortos.
Leiamos Contos da Montanha – É preciso! –, pois, parafraseando o próprio Torga, no prefácio da sua quarta edição, pode ser que o exemplo seja seguido, e o êxodo para os best-sellers toscos, que empobreceu a nação literária, comece a fazer-se em sentido inverso, e as nossas misérias e tristezas mudem de fisionomia. O mundo literário necessita urgentemente de ser repovoado pelos clássicos.

Carlos Meireles é heterônimo literário de Clauder Arcanjo.


SERVIÇO
Livro: Contos da Montanha
Autor: Miguel Torga
Editora: Publicações Dom Quixote