segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Se for costume...

Clauder Arcanjo

Se for costume o acalanto da solidão,

Acostumado me encontro.

Se for costume o assanhado da pulsão,

Acostumado me encontrei.

E, se for costume (costume de não ter jeito),

O malsinado gosto pela vã ilusão...

Acostumado sempre; eu me (re)encontrarei.

Contos para dez de julho


Clauder Arcanjo

Persuasão

Bigode espanado de raiva, calça com cós alto, pisada dura de decisão. Em passos largos para a casa do devedor. Atraso de longos meses. Por precaução, o revólver do vizinho, emprestado, para qualquer argumentação adicional. “Hoje, trago meus cobres!”

Todos à espera. Longas horas.

Ao cair da tarde, à sombra do poente, uma figura cabisbaixa. Antes das perguntas, o desabafo:

— Comprou-me o revólver fiado, preço de ocasião!

***

Pesadelo

Pânico, vale escuro, gritos arrepiantes, vultos endemoniados, luta renhida, espada e fogo ameaçadores, fuga em desespero e... a queda num precipício de pedras pontiagudas. Frio no estômago.

Antes do choque fatal, o acordar em sobressalto. Suor porejando na testa lívida.

Sentado, suspiro de alívio, a correr os olhos bem abertos: o catre velho e fedorento, a esposa desdentada e birrenta, o casebre em frangalhos, o urinol cheio e surrado, o ronco apavorante da sogra na esteira...

Saudades do pesadelo.

***

Pindaíba

Antes, filé, mesa posta. Hoje, feijão de favor, e olhe lá. No passado, linho branco, jeito de bem-sucedido. No corpo, agora, um morim puído, remendado, jeito de bem lascado.

Lembrança do cigarro long size, fino, com piteira. Na fumaça do pé-duro, pitado avaramente.

Na pracinha, os olhos das mocinhas, na retreta daquele tempo. Na manhã de hoje, o silêncio de desprezo dos amigos, sono na sarjeta.

A migração da abastança para a pindaíba. Em dez anos. Num piscar de olhos do destino.

E Acácio conheceu Licânia (Parte III)


Clauder Arcanjo

Há duas semanas, Acácio e eu deixamos Mossoró. Rumo a Licânia.

Levei uma crônica para tirar Acácio de Mossoró, e outra (coisas da idiossincrasia acaciana) na nossa viagem até Fortaleza.

Pois bem, restabelecido do relato anterior, continuemos. Como restabelecido?!...

Você não conhece Companheiro Acácio, dileto e inocente leitor desta página dominical! Acácio, quando quer e bem entende (e quase sempre quer e pretende), põe (e dispõe) qualquer mortal com os nervos na antessala da loucura. Estado que, infelizmente, adentrei em solo alencarino.

Chegamos a Fortaleza e cuidei de recorrer aos olhos de minha musa, Biscuí. Ela não pronunciou nenhuma palavra. Não foi preciso; simplesmente pôs toalha branca e sabonete nas minhas mãos e apontou-me o caminho do banho. Isso sem não antes dar-me um copo de suco de maracujá. Copo duplo.

Sorvi-o, com as mãos trê-mu-las.

— Minha senhora, seu esposo dirige pior do que escreve. A senhora já sabia?

Mal fechou os lábios, Acácio sentiu a fúria de Luzia. Na forma de um raio de recriminação que lhe fuzilou a face macilenta. Energia de mil megatons.

Sem jeito e sem argumento, cuidou de se retirar. Quis saber onde ficava a casa de banho, e tomou uma ducha demorada.

Hora depois, Acácio adentrou à sala, dando de cara com todos sentados à mesa. Sogro, sogra, meus filhos mais velhos, e Luzia. Com seu olhar de loba ferida.

Raras vezes jantei envolto em tamanho silêncio. Silêncio constrangedor, que fique bem claro, não nego. Mas como eu precisava daquela paz modorrenta para recuperar-me de uma viagem tão torturante!

“E terei que ter forças para conduzi-lo por mais longas léguas até Santana.”

— Senhora Luzia, permita-me: a senhora cozinha melhor de que seu marido verseja. A senhora já sabia?

A emenda ficou pior do que o soneto.

Em fração de nanosegundo, Biscuí pôs em Acácio seus olhos em brasa, a mastigar, por entre os lábios rijos:

— Tudo aqui servido foi arte de minha mãe, senhor.

Luzia deu as costas, e tomou o rumo da cozinha. Não sem bocejar um dialeto imperceptível aos linguistas de plantão, no entanto plenamente traduzível pelo gestual que o acompanhava.

Um fosso de silêncio se interpôs entre Companheiro Acácio e minha musa inspiradora.

É claro que, na maioria das vezes, eu fiquei ao lado de Acácio em suas lutas quixotescas, em seus longos embates policarpo-quaresmais, em suas (por mais descabidas que fossem) filosofices provincianas... Mas ficar contra minha Biscuí!?... Isso nem pensar.

Acácio viu-se em papos de aranha. Sem saída, fechou-se em copas. Deitou-se cedo, fingindo uma dor de cabeça inverossímil.

...

No outro dia, antes do sol por os olhos no horizonte, fui desperto por risadas frouxas e dadivosas.

Abri a porta do quarto e, ainda tonto de sono, encontrei Companheiro, em mangas de camisa, a rir desbragadamente das histórias infantis contadas por Helena, nossa cozinheira.

— Acácio?!...

— Meu querido amigo, sua servidora revelou-se-me uma boníssima contadora de causos. Tão boa, creia-me, quanto você em seus contos de Licânia.

...

Contos para sete de agosto


Clauder Arcanjo

Telha-vã

Gota a gota. O soro na veia. Na lembrança, as goteiras da velha casa. Grande e de telhas-vãs. Encolhido na rede, de olho no alto da cumeeira. A chuva e o seu barulho, viço da invernada. O susto do relâmpago, luz na noite do sertão.

Agora, essas gotículas de soro. No leito, de olho no azul e branco das paredes do hospital. Teto baixo, forro de gesso. Saudade gotejante. O relâmpago na vista trêmula, medo do esmaecimento de uma vida vã.

***

Tenor de velório

Noite sem morcegos e corujas. Igreja com esquife. Um corpo e sua meia dúzia de conhecidos. Gente pouca, reza fraca. Ave-marias em murmúrio. Parcas lágrimas. Vigília longa.

De repente, a beata e seu cântico. Desafino geral. Constrangimento.

Novo início. A tentativa de limpeza das gargantas.

Então, o surgir de algo limpo e forte. A curiosidade. Um bêbado, com ares de tenor. Um gregoriano. Única glória do humilde velório.

***

Terral

Areal medonho, praia sem pássaros, algas nas pedras. Uma lua matreira por detrás dos morrotes. Um sol imaginário.

Em tudo, um silêncio profundo, encordoado com o marulho queixoso das vagas contidas.

Deitada na rede, uma moça suspirosa. Um sonho de princesa nos olhos fundos de praieira. Único terral à beira-mar.

E Acácio conheceu Licânia (Parte II)


Clauder Arcanjo

Na crônica do domingo passado, na qual relatava o meu reencontro com o Companheiro Acácio e a sua decisão de conhecer Licânia, encerrei minha página com: “Deixamos Mossoró em direção ao Ceará, ao som de Almir Satter: ‘Ando devagar, porque já tive pressa/ Levo este sorriso, porque já chorei demais...’”

— Para de delongas, e descreve nossa viagem, caríssimo escrevinhador de província!

— Puxa, Acácio, você está me saindo um rematado rabugento.

Pois bem, deixemos as rabugices acacianas do lado de fora, e voltemos à estrada.

O caminho de volta é sempre mais florido, as léguas não nos doem às costas, o vento tem ares mais sadio, os pássaros nos parecem mais festivos...

— A coisa está caminhando, a léguas ligeiras, para o rocambolesco. Para a mais pura, e enfadonha, crônica rocambolesca.

— ...

“Não me deixarei perturbar por Acácio. Não me deixarei. Juro, não me deixarei!”

Em coisa de pouco mais de meia hora, estávamos em solo alencarino. Entramos no município de Aracati, e fui logo saudando a terra de Adolfo Caminha.

— Aracati, berço de Caminha!...

— Aposto que nunca leste um livro de Adolfo Caminha! Pelo menos não do jeito que advogo que todo clássico deva ser lido.

— ...

“Não me deixarei perturbar por Acácio. Não me deixarei. Juro, não me deixarei. Pelo amor de Deus, por Nossa Senhora, e por São Benedito!...”

Resolvi fechar a boca, e tocar fundo rumo a Beberibe. Quem sabe o ar praieiro não o curaria do mal que aflige dez em cada dez intelectuais: a ranzinzice.

Confesso que não aguentei o silêncio posto entre nós. De início, plantei um naco de assovio. Notas soltas, despretensiosas. Liguei-as, então, como a imitar uma canção de infância.

Como não houve reação do indigitado, avancei alguns passos de coragem. Nos lábios, o solfejo de longínqua canção juvenil. Daquelas dos bailes de julho no Alcione Clube, na minha terra querida.

De olhos fechados, Acácio parecia entregar-se à modorra da viagem.

“Quem sabe o meu canto não lhe caiu nos ouvidos como uma espécie de acalanto!?...”

— Cantas pior do que escreves. Sabias?

“Não me deixarei perturbar por Acácio. Não me deixarei. Juro, não me deixarei. Pelo amor de Deus, por Nossa Senhora, e por São Benedito!... Aliás, estes santos são poucos. Recrutarei São Francisco e São Sebastião. Pelo amor de Deus!...”

Um grito quis assomar-me aos lábios rijos. Passei as mãos nos cabelos ralos, respirei fundo e pisei firme no acelerador. Nunca cheguei tão rápido a Fortaleza, capital do Ceará. Todavia, infelizmente, não me dei conta de que os pardais me encheriam as correspondências de avisos de multas de trânsito. Motivo: excesso de velocidade.

— Diriges pior do que escreves. Sabias?

— ...

Fechemos o meu relato por aqui. O que se seguiu às reticências foram coisas impublicáveis.

O que interessa, no entanto, é que já estávamos em Fortaleza, descansaríamos na casa de meus sogros para, no dia seguinte, logo cedo, seguirmos viagem. Licânia-Santana nos esperava, ansiosa.

Contos para trinta e um de julho

Clauder Arcanjo

Sova

A arraia e suas cores. A montagem levou horas, quase o sábado. Papel, grude, fios, cera e paciência.

Irineu pôs os olhos no meu papagaio. Queria-o. Disse-lhe que fizesse o seu. Respondeu-me com um olhar de intriga.

Quando ganhei o campo, senti, nas minhas costas, a pipa, o bafo de meu padrasto e a risadinha traquina de Irineu.

A delação doeu mais do que a sova.

***

Sus

Sempre amigo das expressões antigas, revestidas com a pátina dos anos, esquecidas pelos intelectuais ligeiros. “Feito nas entrepernas. Discípulos da fugacidade, inimigos da gramática e do vernáculo!” esbravejava nas ruas.

Certa vez, ouvindo um discurso improvisado, repleto de respeito à língua pátria, levantou-se, pediu um aparte e disse: “Eia! Sus!...”

O silêncio da ignorância. Escuro e profundo.

Um dos médicos presentes, profissional de ilibada sapiência, não perdeu tempo, conduziu-o ao plantão do Sistema Único de Saúde (SUS) da municipalidade.

Antes de ser jogado na enfermaria, a tentativa duma explicação: “Sus é uma interjeição, malta de muares! Sinonímia de ‘Avante!’”

Novo silêncio. Desta feita, com sua explicação, a transferência para o hospício. No prontuário: “Caso grave”.

***

Tapera

Mato nas frestas. Paredes velhas. Abandono nas bicas e goteiras.

À noite, o pio da coruja, chamamento de João e Lúcia, em sono de espera. O salto da rede, o deitar no estrado de correias, rangido de couro, carcomido pelo uso.

A mistura dos dois, enfiados, um dentro do outro. Os uivos de Lúcia; o prazer, madrugada inteiriça, de João.

Raiar do dia, o sol pelas frinchas... A pobreza e dois corpos suados como mobília da tapera.

E Acácio conheceu Licânia (Parte I)


Clauder Arcanjo

Todos vocês, caros leitores, bem sabem a estima que tenho ao Companheiro Acácio. Sim, eu sei de suas idiossincrasias, até mesmo de sua porção de casmurrice. Mas, atire a primeira pedra, aquele que não as tem. A amizade, sempre soube, traz, em seu bojo, um manto espesso que encobre as faltas de nossos amigos e ressalta o brilho do seu quinhão de virtudes.

Pois bem, deixemos de delongas (mal que acomete dez em cada dez cronistas) e sigamos direto ao assunto. Estou aqui para revelhar-lhes um, para mim, grande feito: consegui, não nego que com suor e lágrimas (não foi preciso sangue), levar Acácio ao meu torrão natal. Sim, à minha decantada Licânia; para os habitantes de lá, a cidade de Santana do Acaraú, na região norte cearense.

De início, as argumentações contra a viagem.

— São mais de quinhentos quilômetros de Mossoró até Licânia! Meus ossos e minha paciência não suportarão tão longa odisseia.

— Companheiro, nada de drama! Levarei uns discos que prometemos ouvir juntos, desde o ano passado, bem como recitaremos os poetas que há tempo não os recitamos. Isso tornará Licânia um destino bem próximo.

— Por precaução, cite as músicas e os poemas que encurtarão tais léguas.

Confesso que não gosto quando a desconfiança assoma à língua de ninguém. Em especial, a de Acácio, que sempre foi um bastião da boa fé e do espírito puro; quando isso se dá, é um forte sinal de que a falta de confiança já grassa solta entre os homens e mulheres de nossa terra. Tomado por um acesso de fúria, despejei em seu colo:

— Ou confia na minha palavra, Acácio, ou não será digno de me acompanhar até a esquina mais próxima!

Fechei o cenho, e dei as costas, com a intenção de me retirar.

— Calma, calma!... — interrompeu os meus passos. Dê-me uma noite para pensar. Aviso-lhe que não quero saber de ouvir as cretinices que assolam as emissoras, daqui e de alhures: agressões contra o bom gosto, achincalhe contra as damas, alcunhando-as de raparigas. Tenha a santa paciência!...

Concordei com o prazo proposto, até porque a minha intenção era viajar somente na tarde do dia seguinte.

Chegando a casa, cuidei de providenciar a minha seleção poética e musical. Numa pequena caixa de papelão, dispus os amigos redutores de quilometragem, artistas e gênios que sempre me fizeram esquecer o tempo: Chico Buarque, Francis e Olívia Hime, The Beatles, Ednardo, Marisa Monte, Bob Dylan, Djavan, Marisa... E, no campo literário: Drummond, Cecília, Clarice Lispector (e sua prosa poética), João Cabral de Melo, Eugênio Montale... “Calma, velho Clauder, vocês não darão a volta a mundo! Serão apenas pouco mais de quinhentos quilômetros!...”; a voz da prudência cuidou de me conter.

Na manhã seguinte, manhã invernal atípica, em pleno julho, a ligação telefônica.

— Já estou de malas prontas. Vou logo lhe avisando, encararei tudo como um retiro para o espírito. Ando deveras cansado do burburinho de nossa cidade.

Não fiz festa. Conheço bem o velho companheiro de luta, nunca foi amigo dos rompantes nem dos sinais hiperbólicos de efusividade.

Início da tarde, buzinei frente ao seu lar. Quando menos espero, sai, à porta, o velho Acácio; impecavelmente vestido, e com um panamá por sobre a cabeça já tomada pela precoce calvície. Ao perceber o meu espanto, declarou, tonitruante:

— Se vamos visitar a sua província, companheiro, terra de Padre Antônio Tomás e de José Alcides Pinto, o linho é sempre o tecido mais adequado.

Entrou no carro, ajustou o cinto, e pigarreou. Como a me dizer: Vamos!

Eram três da tarde, os pingos de uma chuva renitente lavavam o céu da cidade, e eu fui invadido pela saudade dos meus. “Seriam aquelas gotas d’água lágrimas daqueles que já se foram?”

Não quis dividir tal indagação com o Companheiro. Não seria, confesso, de bom tom, provocar o bom e velho Acácio (e seu belicoso agnosticismo), logo no início de nossa viagem.

Deixamos Mossoró em direção ao Ceará, ao som de Almir Satter: “Ando devagar, porque já tive pressa/ Levo este sorriso, porque já chorei demais...”