domingo, 3 de julho de 2011

Contos para vinte e dois de maio

Molha

Carne magra no fogo. Mais osso. No entanto, nos olhos de Lenita, a confiança.

Coentro, pimentão, salsinha, tomate, pimenta, leite... De cada, um pouco. Na medida certa. Em fogo brando, sem pressa. A paciência, rumo ao ponto. O estalar da língua, prova final.

Almoço, o patrão e seu olhar rabugento. Carne sem esperança na travessa fumegante. A oferta de Lenita: uma colher de caldo viscoso.

— Diabo é isso, Lenita?

— Molha, doutor.

— Molho. Mo-lho, entendeu? Aprenda o certo, mulher.

Silêncio. Tão somente o rangido esfomeado dos dentes do patrão a rasgar a carne, agora suculenta e dadivosa. O sorriso de Lenita, a certeza em seus olhos trigueiros. “Molho é o da patroa. Sem gosto, sem nada. O meu é molha!”


Morcegos

Há dias fora de casa, a cabeça a girar, a dúvida a roer o peito: “Voltar ou fugir? Fugir ou voltar?”

No boteco da esquina: o trago amargo e a risada chata do bodegueiro ladrão — no tamanho da dose e no preço. E a cabeça a girar, e a dúvida a roer o peito: “Voltar ou fugir? Fugir ou voltar?”

A mão limpou o cuspo grosso, pisadas no rumo de casa. Ao abrir o portão: o salto do cachorro vira-lata lambendo-lhe as pernas — infalível prova de carinho, e o grito da empregada: “Seu Chico voltou, comadre Maria!”

Na varanda, os olhos na sogra de preto na porta principal, dentes afiados a ranger a saudação, chupa-sangue. A revoada de um morcego no beiral, voo rasante, a cabeça a girar. “Um morcego no telhado e uma chupa-sangue na porta.”

Quando Maria assomou no alpendre trazendo uns olhos esquisitos, Chico fez um carinho em Tubarão, deu um muxoxo para a velha e cuspiu na calçada. “Vou fugir, não posso ficar.”

Os passos na poeira da rua, a cabeça a girar e nenhuma dúvida a roer o peito. “Vou fugir, não posso ficar. Não posso voltar, vou fugir.”


Mormaço

Um calor de se esconder da vida. Florêncio e o pé na parede, balanço da rede no alpendre. Bafo quente na cumeeira.

Junto às alpargatas, um cachorro comido pelas sarnas: o couro, os ossos e o rabo fino, abano das moscas teimosas. No curral, os últimos bichos também nas redes, caídos, sem força, a mastigar o próprio vazio.

Na cozinha, Maria a mexer um feijão duro e ranzinza. Na água e no sal.

A pasmaceira a tocar os dias. Nada de chuva. Os olhos gastos já de pastorar o nascente e debulhar o terço, chamamento pelos santos, principalmente José.

Cansado de tudo, Florêncio cochila. Em sonho, embaralhados: fé, suplício, ossadas e, de repente, um... cheiro de terra molhada.

— Mormaço de chuva, Maria!

O pulo da rede, a pisada no rabo de Piau, ganido sem força.

À frente, os olhos capiongos e fundos da mulher a aguar a última roseira.

— Porcaria!

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