domingo, 3 de julho de 2011

Discurso de posse na AMOL (27/05/2011)

Por Clauder Arcanjo

Exmo Sr. Elder Heronildes Presidente da Academia Mossoroense de Letras

Demais autoridades que constituem esta mesa acadêmica

Minhas senhoras e meus senhores

Milton Pedrosa e Passos Cegos, o romance de Mossoró

“Ridículo, ouvir alguém alardear honestidade, como se merecesse

uma medalha por isso. Parece até coisa que lhe pesa muito.

Quando ela fala, a gente tem impressão de que a

honestidade é um fardo muito difícil de carregar.

Talvez algumas o façam por burrice ou coisa pior.”

(Milton Pedrosa, em Passos Cegos)

Abri a boca e falei olhando nos olhos dos outros:

Qualquer dia o nosso romance vai embora pro Rio de Janeiro...

Parei bruscamente, em seguida tentei continuar a frase, mas acabei desistindo.

Petas... falou um do bando.

Vou mesmo insisti.

Vai nada... advertiu-me Milton Pedrosa.

Quando escrevi este trecho, era março de 2007, para a seção Autores & Obras, da brava Revista Papangu, quase, quase nada, sabia acerca dele. Apenas que gostava de futebol, e, pelo que pude levantar, estreara com um livro de contos, A face de Marta Belo Horizonte, Cultura.

Ganhara de presente a segunda edição, revista, de Passos Cegos, seu primeiro romance, Coleção Mossoroense, 1980. Mal li o trecho de largada do capítulo “O Estribilho”, fiquei sentado à frente dessa obra de Milton Pedrosa, a esgravatar o chão da minha consciência, riscando as brechas do cimento da omissão com uma ponta de remorso.

Um trecho que fugia da pequena prosa estagnada do interior, a escapar, de qualquer modo, à monotonia das ruas largas e vazias, em cujas casas tínhamos nascido, e onde o Nordeste rodamoinhava pó a tarde inteira. Milton realizara a grande saga do romance mossoroense, e eu, aprendiz de bibliófilo, nem suspeitara disso. Ele havia escapado, desaparecido num mundo de onde poucos mandavam notícias, onde muitos sumiram sem aviso a ninguém, mas Pedrosa escrevera para nós, moradores da terra de Santa Luzia, uma saga de nossa gente.

Não nego que, de início, fiquei afundado em tristeza, a dor da falta, o óbice da minha falha como resenhista. Após cada passagem lida, a dor cruel mais se me aguçava. “Sentia-se perdido em Mossoró, numa vida igual a de muitos outros. Nenhum claro, nenhuma saída, por mais remota que fosse. Olhava para trás, para o passado,via o presente e sentia medo ante o futuro ali na cidade, onde a vida se estagnava, à espera de coisas que não sucediam” palavras de um escritor no pleno domínio da narrativa. Em Passos Cegos, mais do que a saga do mossoroense Ladislau (alter ego de Milton?) rumo à cidade grande, o drama psicológico de toda a sua geração.

“Ladislau estava só na praça vazia. No patamar da igreja, agora apenas calma e silêncio. E no silêncio da noite ele se movia oprimido. Espiou as horas na torre alvacenta, onde um relógio dividia o tempo num sincronismo monótono e indiferente, olhou o céu sem nuvens e, arrastando as pernas, seguiu o caminho de sempre”. É desta forma que o autor ressalta a necessidade da personagem partir, em busca de um futuro incerto, mas desejado. Ao se perder em elucubrações e devaneios, chegando tarde, altas horas da noite, o repelão do pai e o tapa na nuca, atirando-o com violência dentro de casa. “ Isto são horas, ‘seu’ cachorro? Vagabundando até de madrugada...”. “A humilhação aos poucos crescia nele, doendo fino como uma agulha na carne... Um vazio descabido enchia-lhe a alma de desconforto. Era esquisito, mas não guardava rancor do pai. Tinha uma enorme pena dele... E nessa mágoa, crescendo..., desabafava-se num choro silencioso, calmo, molhado de lágrimas, que lhe enchiam a boca de um gosto salgado. Um gosto de vida”.

Ladislau na busca do futuro perdido

A realidade dura e opressora dos homens do barracão, os cassacos espoliados. “Tudo fornecido até certo limite, fixado de antemão. O dinheiro não circulava ali. Existia o ‘vale’, e esse pedaço de papel representava a paga do trabalho da semana”.

Os trabalhadores a cuspirem “pedaços de frases, desiludidos e pacientes”. “Os diálogos cruzavam-se, os pedaços de conversa desenhavam no espaço, como se fossem traços, a miséria coletiva da massa desamparada, que não era dona de suas próprias forças”. O romance, muitas vezes, assume um viés panfletário, e só não descamba para a mediocridade artística, porque o autor é um esmerado narrador, e, quase sempre, emprega o seu texto apenas a serviço do brilho seco e limpo da sua prosa. Quase um Graciliano potiguar, por que não? “Os homens aos lotes, em turma... facilmente substituídos, e o ramerrão continuava, ininterrupto”.

No capítulo ambientado no ataque de Lampião a Mossoró, em 1927, a arguta crítica aos poderosos de então: “A noite veio. Os trens passavam abarrotados de gente na fuga para mais longe, para Grossos e Areia Branca. Muitos, porém, não pensavam em permanecer por tão perto. Banqueiros e grandes comerciantes de Mossoró planejavam embarcar num navio ancorado no porto, ou em qualquer barco, e ficar no meio do mar, até que a sorte da cidade fosse decidida”. Os covardes da resistência.

O capítulo “Um homem gordo” é recheado de construções primorosas. “Passava gente correndo no rumo do Alto da Conceição. Vinha dos lados da cidade. As bodegas, espremidas entre as casas, onde feixes e feixes de lenha se alinhavam aos montes nos ângulos das paredes, eram invadidas e as achas desapareciam, sorvidas pela massa deslizando desordenada, deixando para trás um zumbido de abelhas assanhadas”. O ataque à residência do perseguido: “A massa avançou contra as portas inseguras. As janelas desabaram com estrondo, as portas abriram-se, arriando sobre os batentes. Pelas goelas das portas e pelos buracos das janelas, pobres móveis imprestáveis eram atirados e iam de encontro às pedras nuas debaixo de um céu mudo”.

“Os acontecimentos entravam-lhe pelos nervos adentro como verruma, dando-lhe vontade de ir embora... Mossoró não tinha futuro. Longe, em outros lugares, pelo menos não existia essa certeza de não ser nada, de não mudar as coisas” – Ladislau, ou Milton?, cansado.

Autobiografia de Milton

Todo romance tem um quê de autobiográfico, disto nenhum escritor há de escapar. Com Milton Pedrosa não foi diferente. O tecido narrativo toma, de empréstimo, cenas e fatos da geração de Pedrosa, grande parte da narrativa se desenvolve entre 1920 e 1930. História e estória convivem num entrelaçamento bem equilibrado. Tipos e personagens trazem a força de quem leva a vida a pulsar dentro de si.

Mossoró, entreposto comercial. “Cavalos, burros e jumentos arrastavam-se magros, secos, os ossos espetando a pele... tomados por aquele desalento que dominava os homens, os animais e a terra”. A poeira fina, marca registrada da cidade: “Mossoró vivia na sua modorra, as ruas desertas e nuas. Quando o sol a pino fuzilava nas pedras e o ‘Nordeste’ seco espalhava a poeira de casa adentro, a tristeza crescia ainda mais. Parecia vir de longe no bojo do vento”.

Finalmente, a partida. “ Vai para o Rio de Janeiro...” A noite toda ouvindo a voz descrente: “’ Qual! Você não sai é daqui. Com essa moleza!’ Procurava esquecer, mas o motejo do outro inchava em sua cabeça”. O encontro com Nicácio no Rio, e a desilusão. Em seguida, a conversa com o escritor Bezerra Lopes. “O poeta era a primeira pessoa a descer até ele para explicar as coisas”. O desabafo de Nicácio: “ Umas bestas! Você ainda está com ilusão. São todos uns vendidos!”. “De repente, tudo aquilo esfumou-se... o poeta deixou de existir, no espaço surgiram grandes e negros urubus”. E a esperança dava lugar ao desespero.

Quando na multidão, “olhava ao redor, e que distinguia? Seus olhos apenas viam tristezas na face do próximo. O riso não passava da amargura humana sob disfarce, o mundo não era o que esperava dele... Procurava misturar-se, igualar-se aos demais, fundir-se no todo, e percebia que jamais o conseguiria”. E tal singularidade em Ladislau roía-lhe a carne e o juízo. “Na casa de Bezerra Lopes, o poeta estendeu-lhe a mão. E ele apertou-a, como algum náufrago se agarra a uma esperança salvadora”. Mas somente o homem salva a si mesmo. “Não. Não adiantava. Sua vida vinha era de dentro para fora. Da criança de pés descalços nas ruas largas e vazias da cidade humilde, onde ninguém sabia o que fazer do tempo, e os meninos se educavam com as histórias de cangaceiros, de buracos de balas, de furos de faca, de surras dadas pela polícia, de pedidos para votar em doutor fulano para deputado, da pobreza e da fome. Sim, da pobreza e da fome...”. E seguimos o calvário de Ladislau, descrito de forma respeitosa pela pena de Pedrosa. “ Não se esqueça da gente”, dizem milhões de donas Hildas, espectros de sua madrasta, e “a noite envelhece”.

Milton Pedrosa. “De lá de Mossoró, ele saíra. Não podia sair dele próprio. Do que ficava por dentro. Disso não tinha conseguido fugir, libertar-se definitivamente... O vazio que sentia era um peso obrigando-o a refugiar-se no passado. Era um rio onde outras vidas vinham a se despejar.” E nas pegadas desses passos cegos é que formou a riqueza telúrica desta grande obra. O romance de Mossoró.

Honra imerecida

Hoje, imerecidamente, passo a ocupar a cadeira de número 30, da Academia Mossoroense de Letras (AMOL), cujo patrono é o ícone da imprensa mossoroense Jeremias Nogueira da Rocha, e o seu primeiro ocupante foi ninguém menos do que um dos maiores homens das letras desta terra de Santa Luzia: o contista, cronista, novelista, romancista Milton de Albuquerque Pedrosa. Nascido em Mossoró, aos 17 de novembro de 1911; sim, estamos no ano do seu centenário de nascimento, e a ele rendo todas as graças e vivas desta noite.

Por que imerecidamente?! Explico. Aprendiz de escritor com um livro de contos Licânia (2007), com um livro de minicontos - Lápis nas veias (2009) e, hoje, nesta noite de 27 de maio de 2011, a lançar um pretenso livro de poemas – Novenário de espinhos, como poderia ser digno de ocupar a vaga de um mestre de mais de uma dúzia de belos livros? A face de Marta (contos); Passos cegos (romance); O homem que não gostava de cães (contos); Noite e esperança (novela); O diabo é meu amigo (teatro); Américo, este mundo e o outro (romance); Bibi e os Gonguêos (contos); Gol de letra (ensaio e antologia); Futebol tem cada uma... (sob o pseudônimo de Armando M. Graça); Fantasma em Orós (romance); A velha e os gatos (contos – coletânea)..., dentre outros.

Familiares de Milton Pedrosa, familiares desse mossoroense falecido no Rio de Janeiro aos 21 de dezembro de 1996: nossa gente, nossa imprensa, nossos homens e mulheres e, em especial, esta Casa de Cultura não podem deixar de render aleluias literárias a tão grande mestre, a esse Pedrosa reconhecido nacional e internacionalmente. Com livros traduzidos para o russo, o romeno e o espanhol.

E a você, meu caro Milton, prometo dedicar-me, com arte e engenho, a ser um pouco mais digno da sua augusta memória. A AMOL, que porta a honra de ter em seus quadros o seu nome, nunca será um Paraíso Perdido.

A todos os presentes, em especial aos meus pais, aos meus familiares, aos amigos que promoveram esta noite, na pessoa de Francinete, (sem esquecer a minha musa Biscuí), o meu muito, o meu muitíssimo obrigado.

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