segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Contos para três de julho


Clauder Arcanjo

Oração para o poeta

Deus Pai e todos os poderosos, guardai e zelai pela saúde do poeta. Perdoai as nossas ofensas aos seus versos, agora, bem antes de tudo, para que nunca venha a sua morte. Amém.

Ave Maria e todas as cheias de graças, rogai por ele, que nunca foi um pecador. Santas e Marias, mães de todos nós, nós que no fundo somos todos poetas, que o Senhor esteja sempre com ele, único bendito entre nós.

Salve o rei, pai dos versos de misericórdia, pão nosso de cada dia. Ele que sempre nos perdoa, assim como nós nunca aprendemos a perdoar.

Tenha pena de nós, Senhor. Dai saúde ao poeta. Agora, porque, se não, será a nossa morte. Pois, sem sua poesia, viveremos em um vale de lágrimas, sem direito a amém.

***

Paixão gemelar

Zélia, jovem de cabelos longos e olhos fundos. Corpo belo e mãos sedosas. Moça sem namoro, a desfilar desacompanhada pelas ruas. Suspiro nas janelas, desespero no mundo dos jovens mancebos.

A chegada na cidade de um casal com dois filhos, jovens e gêmeos univitelinos. Carga genética igual, mas de modos opostos. Pádua, quieto, amigo dos estudos e da rotina; Cícero, afogueado, louco pelo imprevisto e pela aventura.

Os dois deram por Zélia, e os corações pulsaram iguais. Zélia suspirou, em dúvida.

Com o tempo, nasce a percepção em Zélia de que amava os dois. Durante a semana, os olhos fundos queriam o pacato Pádua; nos finais de semana, a jovem delirava pelas loucuras de Cícero.

***

Pena milagrosa

Velho, mãos crestadas pelo abandono e pela idade avançada, olhos longe. Recolhido ao fundo do abrigo, colchão de palha. Nome: desconhecido. Alcunha: Zé Calado.

Nada de visitas, de carinhos, de afagos. De alegria, a comida pontual: prato com arroz e feijão, e copo com água fria.

Numa noite, o acesso a um caderno e a um toco de lápis. Os dedos crispados a rabiscar no papel. De olhos brilhantes, concentrado, noite afora.

Quando morto, embaixo do leito, um caderno de notas. Jogado no lixo, fora recolhido por um catador. Cheio de letrinhas, empestado de histórias. Levado para casa, como presente à mulher letrada. Nesta, após leitura atenta, as labaredas do corpo acesas.

Em poucas horas, os lábios reviram o batom; o colo a última gota de perfume; a pele o mais novo vestido; na boca uma porção de palavras esquecidas: um rosnado chamando pelo seu velho.

A flor do sexo de volta ao barraco, graças ao caderno encontrado no lixo.


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