segunda-feira, 26 de setembro de 2011

CADERNO CA (Parte LXXXII)

Antes dela, o mundo se resumia...

Quase toda a vida toda

Orientando meus passos

E eu só lhe ensinei

A seguir meus sonhos.

(Antônio Francisco)

Antes dela, o mundo se resumia a meras lembranças, esparsas lembranças. Uma cena de infância, com uma nesga de solidão; uma aventura chinfrim nos confins do Serrote da Rola (para os olhos e métrica de infante, um Himalaia), sem o menor jeito de legado heróico; um chiclete engolido a seco, seguido de um medo desgraçado, dias e noite a fio, de que aquilo lhe colasse de repente as tripas, seguido de morte certa (brincadeira sem graça dos molecotes da vizinhança, alimentado pelo desejo irrefreável dos mais velhos de nos impor limites. Desta feita, contra as atraentes e sedutoras gomas de mascar).

Quando julho de 1982 chegou, ele já levava, no fundo do peito, a decisão: “Ou com ela ou sem ninguém!”

Festas da Padroeira. Senhora Sant’Anna. Na abertura do novenário, a alvorada. Bandinha de música, e fogos. Muito foguete. Os pássaros, em uma azáfama de alegria, a chilrear seus acordes por sobre a cidade, formando uma espécie de singular fundo musical. A cidade a acordar pela mistura peculiar de dobres, espoucar de fogos e notas do passaredo. Saudosos, os filhos da terra Licânia regozijavam-se com a feliz saudação às festividades telúricas.

No dia 18, primeiro baile, no Alcione Clube, entrada à festa um pouco atrasado. Ao percorrer o salão, em busca de um local mais discreto, os olhos nos olhos dela. Caminhou em sua direção, ela caminhou em sua direção. Mão por sobre a mão dela. A outra mão dela por sobre a dele. Sanduíche de mão de gente. Uma pergunta desimportante balbuciada. Uma resposta, pura evasiva, mais desimportante ainda, pseudo exalada.

“Enquanto isso, vamos dançar?!” – havia pressa, apesar do tempo ter parado lá fora.

E dançaram, pareciam flanar sozinhos no salão. Face to face. O perfume dela a invadir-lhe o nariz e os pulmões. Inebriante aroma da paixão.

E dançaram juntos, e juntos ficaram. Para não mais se separarem. A metade de cada um com o outro. Comunhão de carne e espírito. Ele via nela a substituta de Djanira, sua genitora. Ele via em cada gesto dela, a musa dos seus dias, sua Diana, deusa guerreira dos seus embates. Ele flagrava nela, a proteção contra as suas agruras, sua Maria Protetora. Ele ganhou dela, e dava graças aos santos, o paraíso em forma de mulher. Com o tempo, a alcunha: Biscuí. Seu bibelô, seu brinquedo, regalo dos deuses para um pobre mortal.

Noivaram, casaram, pois não podiam ficar por casar. Deus testemunhou a união de dois em um, na nave do Cristo-rei.

Construíram um ninho, canto singelo de amor e paixão. Pouso da ave da graça. Com o tempo, os frutos, sementes de amor: Artur, Mateus e Lucas Francisco (o benjamim, anjo temporão).

Por onde anda, ele agradece. Por todos os séculos e séculos, amém. Depois dela, o mundo nunca mais se reduziu a meras reminiscências.

Todavia, mais tarde, quando se fez escrevinhador de província, de lápis nas veias, sentiu no corpo e no olho da alma, a fraqueza do verbo em traduzir, em carne-palavra, esse fogo-sentimento.

Todas as noites, antes de dormir, o indefectível ritual: ora um pai-nosso e uma ave-maria, aproxima-se do leito, afaga-lhe os cabelos recendendo a bálsamo, oscula-lhe a face... e silencia. Para, somente então, entregar-se, sorrindo, a Morfeu.

Clauder Arcanjo — Escritor

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