segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Contos para cinco de junho

Clauder Arcanjo

O Dom Quixote de Licânia

Num lugar do sertão de Licânia, nas lonjuras do Ceará, vivia, não há muito, um meninote, de cartilha em riste, bermuda antiga, burrico fraco, e cachorro sardento.

Seu nome, Toinho de Licânia. No início, lia arrastado, letra a letra, sílaba a sílaba; depois, de carreirinha, no galope do texto.

Certa noite, Toinho conheceu um livro diferente. Em dois tomos. Os olhos a se encantarem com as aventuras do fidalgo Dom Quixote de La Mancha e seu fiel escudeiro Sancho Pança.

Uma semana depois, Toinho pôs arreios no burrico, convocou o amigo Inácio para subir no lombo do seu carneiro Jeremias, sagrando-o seu fiel companheiro. E, portando uma espada de talo de carnaúba e uma tampa de panela velha como elmo, entraram pelas matas de Licânia a proteger os pobres e oprimidos.

No final da tarde, os dois retornaram. Os corpos repletos de picadas de mutuca, olhos baixos e roupas cravejadas de carrapichos.

Foram dormir no alpendre. Recuperados do cansaço, no meio da noite se viram arquitetando uma nova fuga. Toinho de Licânia concluiu que lhe faltara uma dama; sonhou, então, com a sua Dulcinéia del Trancoso.

***

O Filósofo

– Tudo cai no colo da metafísica. As agruras da existência do ser e do não-ser interpostas na vacuidade dos dias, as amplitudes da pseudo-sabedoria, as desrazões da mente humana... As ilações do homem como lobo do proto-homem! A metafísica imbricada na holo-filosofia... Evoé!

O pequeno recinto do boteco vibrava com o vozeirão de um homem mirrado, incrustado no tamborete ao canto, olhos rútilos.

Assustado, pedi um refrigerante; mas, ao sorvê-lo, os meus olhos não despregavam da figura estranha.

O dono do boteco – baixo, gorducho, suíças longas, bigode assanhado e com as marcas da nicotina – soprou, displicente, por sobre o balcão que nos separava:

– Antes era apenas um bebarrão calado e quieto. Com a presença de uns intelectuais da faculdade de filosofia aqui em frente, transformou-se neste pobre coitado, mistura de bêbado e louco. Malditos filósofos!...

Encobri o livro que trazia, paguei a despesa e me despedi, cabisbaixo, atravessando a rua.

***

O homem útil

Parto normal e rápido. De olhos abertos, o choro. O suficiente para anunciar a vida.

Lágrimas só para a mamadeira. Doenças de monta nenhuma, apenas as gripes de ocasião. Mais alguns meses, engatinho, primeiros passos e a fala. Tudo prático. Sem arroubos, só o necessário.

Na vida, a bússola da objetividade. Estudo só para a prova. Notas para passar. Faculdade escolhida pela fama, não por vocação. Casamento de interesses. Filhos, nenhum. Vida útil.

Na morte, corpo ao crematório. Quando as cinzas foram levadas à viúva em um jarrete de louça, ela proferiu a sentença final: “Façamos algo mais útil, joguem-nas no mato. Servirão ao menos como adubo.”

O jarrete ficou disposto na sala como apêndice à decoração.

Clauder Arcanjo - Professor

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