Clauder Arcanjo
Sova
A arraia e suas cores. A montagem levou horas, quase o sábado. Papel, grude, fios, cera e paciência.
Irineu pôs os olhos no meu papagaio. Queria-o. Disse-lhe que fizesse o seu. Respondeu-me com um olhar de intriga.
Quando ganhei o campo, senti, nas minhas costas, a pipa, o bafo de meu padrasto e a risadinha traquina de Irineu.
A delação doeu mais do que a sova.
***
Sus
Sempre amigo das expressões antigas, revestidas com a pátina dos anos, esquecidas pelos intelectuais ligeiros. “Feito nas entrepernas. Discípulos da fugacidade, inimigos da gramática e do vernáculo!” — esbravejava nas ruas.
Certa vez, ouvindo um discurso improvisado, repleto de respeito à língua pátria, levantou-se, pediu um aparte e disse: “Eia! Sus!...”
O silêncio da ignorância. Escuro e profundo.
Um dos médicos presentes, profissional de ilibada sapiência, não perdeu tempo, conduziu-o ao plantão do Sistema Único de Saúde (SUS) da municipalidade.
Antes de ser jogado na enfermaria, a tentativa duma explicação: “Sus é uma interjeição, malta de muares! Sinonímia de ‘Avante!’”
Novo silêncio. Desta feita, com sua explicação, a transferência para o hospício. No prontuário: “Caso grave”.
***
Tapera
Mato nas frestas. Paredes velhas. Abandono nas bicas e goteiras.
À noite, o pio da coruja, chamamento de João e Lúcia, em sono de espera. O salto da rede, o deitar no estrado de correias, rangido de couro, carcomido pelo uso.
A mistura dos dois, enfiados, um dentro do outro. Os uivos de Lúcia; o prazer, madrugada inteiriça, de João.
Raiar do dia, o sol pelas frinchas... A pobreza e dois corpos suados como mobília da tapera.
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