Entrei em Licânia, na companhia do mestre Acácio, na semana passada. Recepcionado por uma tulha de lixo! Nem gosto de lembrar.
— Caterva de maus administradores! — ouvi da boca do próprio Companheiro; fazendo eco ao desabafo deste provinciano, gravada nesta página no domingo pretérito.
Pois bem. “Não é o caso de perdermos a classe, nem tão pouco de deixar de curtir as graças da minha província.” — concluí, cá comigo.
Fechei as narinas ao mau cheiro da incômoda recepção, conduzindo, às pressas, o carro em direção à praça Padre Antônio Tomás.
Lá, fomos recebidos por um trinado mavioso dos pássaros da minha terra. Era manhã, o sol mal despontava no horizonte, e o passaredo, em algazarra lírica, deixava as copas dos benjamins e algarobas rumo à mataria das ribanceiras do rio Acaraú.
— Não há despertador melhor para qualquer cidadão: ser acordado por este chilreio.
— ...
Não gosto das reticências. Em especial, as que saem do bestunto de Acácio. Mas, fiz de conta que não as percebera. O desgosto do lixão, exposto na entrada de Santana, já me seria problema suficiente a administrar durante o longo dia com Acácio, e suas cruéis e ferinas admoestações.
Descemos do carro, e dirigi-me ao busto do Poeta. Em voz alta, recitei “O Palhaço”, soneto afixado, em bronze, no monumento a Padre Antônio Tomás.
Ontem via-se-lhe em casa a esposa morta
E a filhinha mais nova tão doente!
Hoje, o empresário vai bater-lhe à porta,
Que a plateia o reclama impaciente.
(...)
— Um soneto primoroso assim tem que ser lido com a voz da alma, caro amigo. Nada de arroubos no campo da verdadeira Poesia. Contenha-se! — calou-me Acácio.
Ficamos os dois, silentes e estáticos, juntos ao Príncipe dos Poetas Cearenses; à sombra de uma pequena árvore, pois o sol já se postara alto.
Não sei quantos minutos ficamos ali. Só senti que uma aura de lirismo invadiu-nos corpo e espírito, e fomos arremessados para os desvãos do não-tempo.
Fui trazido de volta por um brado, som e fúria.
— Pardal de uma figa! Pássaro dos diabos!
— Calma, companheiro Acácio! O que foi? Qual o motivo de tantos impropérios?
— Não estás vendo. Não estás vendo!...
Companheiro Acácio, caro leitor, havia sido “batizado”, no alto do seu cocuruto, pelas fezes de um pardal travesso.
— Saio da minha cidade, a mais de quinhentos quilômetros, para ser emporcalhado pelo excremento de um pardal licaniense. Só me faltava essa. Só me faltava essa!
Passei-lhe o meu lenço; a ira fê-lo recusar.
Como a casa dos meus pais era logo na esquina, toquei-o para a residência dos meus genitores. Um bom banho restituiria-lhe o bom cheiro, e espero, a boa prosa.
Entrou casa adentro sem nem responder ao bom-dia do meu pai, o nosso querido Zequinha.
— Só me faltava essa. Só me faltava essa!... — ainda bradava Acácio, debaixo do chuveiro.
No próximo domingo, prometo, contarei como tudo terminou. Ou continuou!?...
Clauder Arcanjo — Escritor
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