segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Cruviana


Clauder Arcanjo

Do caderno de Netarino: “Onde houver um aglomerado humano, haverá uma fábrica de mitos”.

(François Silvestre de Alencar, em Esmeralda: Crime no Santuário do Lima)

Primeira estação

A noite mal pousara suas garras na mataria, quando se ouviu um frêmito por entre os marmeleiros.

Os bichos correram desembestados. Aqueles que tinham locas cuidaram de se afundar chão abaixo, os que dispunham de outros esconderijos meteram a cara adentro.

A pequena casa de taipa, aparentemente vazia, viu-se sacudida, seguidas vezes, pela ventania maluca. “Cruz-credo! Cruz-credo!” As panelas de barro foram estilhaçadas, a moringa explodiu, os cabelos do telhado de palha foram assanhados...

No catre ao fundo, numa espécie de leito de morte, Zefinha, em cima do couro e dos ossos, ladeada por Jesus, Maria e José, sorriu e deu os braços para o invasor.

Segunda estação

Meses depois, numa rede fétida da pequena casa de taipa, um menino dividia os infortúnios da vida com Zefinha.

Ele viera ao mundo numa noite de muita ventania, daquelas que as tramelas não conseguiam segurar as bandas das portas e das janelas.

A partir de então, um uivo de bicho vento em cio cortava as oiças da pobre mulher. Ela se levantava, reforçava o calço das portas e janelas com estacas de sabiá, cobria o pequeno com nacos de pano, e assoviava, desajeitadamente, uma nesga de canção e reza.

— Vai, vai, vento dos diabos. Procura outra freguesia, e não me plante seu cruel destino...

Terceira estação

Quinze anos se passaram. O que fora menino revelou-se um forte caboclo: Bastião.

Disposto e determinado, rasgara o leito do rio seco em novas vazantes. Remendara as cercas de pau a pique, cuidara das criações e, todas elas, respondiam-lhe com balidos e crias sucessivas. Nos fins d’água, todo ano, a casinha ganhava um regalo. Rádio de pilha, novo candeeiro, guarda-roupa de três portas, jogo de cadeiras de palhinha, um oratório para a Virgem Maria, Sant’Anna, São Francisco e São Pedro...

E nem sinal daquele vento de outrora.

Quarta estação

Numa certa noite de sábado, o forró comia solto na casa de Dona Matilde. Meia légua à frente. Chão batido, sanfona, zabumba e triângulo. A cachaça fora servida sem tomar chegança. Os goles desciam goela abaixo num desespero só.

Com pouco, estavam todos zonzos; bêbados, mas firmes no forró. Bastião, indisposto, fingira beber. Bicava cada dose, e despejava o restante para o santo aos pés do juazeiro da frente da casa, a cabeça meio avoada.

À meia-noite, um estalido na mata calou sanfona, triângulo e zabumba. De repente, um vento fino e cortante, de arrepiar os cabelos da nuca, varria o alpendre da festa. Todos quedaram-se.

De início, Bastião imaginara-os embriagados, efeito da branquinha. O vento foi ganhando força e levantando a saia das caboclas, que, de olhos fechados, continuavam a dançar sem seus parceiros. Com as faces em brasa, passaram, então, a uivar como cachorras no cio. Com mais alguns minutos, candeeiros apagados, Bastião só ouvia o rasgar do vento e os gritos de gozo das cunhãs.

Com medo, Bastião enfiou-se na mata, desembestado no rumo das ventas.

...

Semanas depois, as caboclas, ubradas, foram todas conduzidas ao pé do altar para a comunhão do matrimônio.

...

Hoje, Bastião, como um pé de vento, corre as lonjuras do sertão a versejar histórias de alerta acerca de uma “ventania perigosa, a malsinada cruviana”.

— Vai, vai, vento dos diabos. Procura outra freguesia, e não me plante seu cruel destino...

Dão-lhe, ao máximo, os ouvidos da curiosidade e da troça e, como prêmio maior, a alcunha de poeta avoado e louco.

...

... Um frêmito na mata...

“Cruz-credo! Cruz-credo!”

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