Clauder Arcanjo
Todos vocês, caros leitores, bem sabem a estima que tenho ao Companheiro Acácio. Sim, eu sei de suas idiossincrasias, até mesmo de sua porção de casmurrice. Mas, atire a primeira pedra, aquele que não as tem. A amizade, sempre soube, traz, em seu bojo, um manto espesso que encobre as faltas de nossos amigos e ressalta o brilho do seu quinhão de virtudes.
Pois bem, deixemos de delongas (mal que acomete dez em cada dez cronistas) e sigamos direto ao assunto. Estou aqui para revelhar-lhes um, para mim, grande feito: consegui, não nego que com suor e lágrimas (não foi preciso sangue), levar Acácio ao meu torrão natal. Sim, à minha decantada Licânia; para os habitantes de lá, a cidade de Santana do Acaraú, na região norte cearense.
De início, as argumentações contra a viagem.
— São mais de quinhentos quilômetros de Mossoró até Licânia! Meus ossos e minha paciência não suportarão tão longa odisseia.
— Companheiro, nada de drama! Levarei uns discos que prometemos ouvir juntos, desde o ano passado, bem como recitaremos os poetas que há tempo não os recitamos. Isso tornará Licânia um destino bem próximo.
— Por precaução, cite as músicas e os poemas que encurtarão tais léguas.
Confesso que não gosto quando a desconfiança assoma à língua de ninguém. Em especial, a de Acácio, que sempre foi um bastião da boa fé e do espírito puro; quando isso se dá, é um forte sinal de que a falta de confiança já grassa solta entre os homens e mulheres de nossa terra. Tomado por um acesso de fúria, despejei em seu colo:
— Ou confia na minha palavra, Acácio, ou não será digno de me acompanhar até a esquina mais próxima!
Fechei o cenho, e dei as costas, com a intenção de me retirar.
— Calma, calma!... — interrompeu os meus passos. Dê-me uma noite para pensar. Aviso-lhe que não quero saber de ouvir as cretinices que assolam as emissoras, daqui e de alhures: agressões contra o bom gosto, achincalhe contra as damas, alcunhando-as de raparigas. Tenha a santa paciência!...
Concordei com o prazo proposto, até porque a minha intenção era viajar somente na tarde do dia seguinte.
Chegando a casa, cuidei de providenciar a minha seleção poética e musical. Numa pequena caixa de papelão, dispus os amigos redutores de quilometragem, artistas e gênios que sempre me fizeram esquecer o tempo: Chico Buarque, Francis e Olívia Hime, The Beatles, Ednardo, Marisa Monte, Bob Dylan, Djavan, Marisa... E, no campo literário: Drummond, Cecília, Clarice Lispector (e sua prosa poética), João Cabral de Melo, Eugênio Montale... “Calma, velho Clauder, vocês não darão a volta a mundo! Serão apenas pouco mais de quinhentos quilômetros!...”; a voz da prudência cuidou de me conter.
Na manhã seguinte, manhã invernal atípica, em pleno julho, a ligação telefônica.
— Já estou de malas prontas. Vou logo lhe avisando, encararei tudo como um retiro para o espírito. Ando deveras cansado do burburinho de nossa cidade.
Não fiz festa. Conheço bem o velho companheiro de luta, nunca foi amigo dos rompantes nem dos sinais hiperbólicos de efusividade.
Início da tarde, buzinei frente ao seu lar. Quando menos espero, sai, à porta, o velho Acácio; impecavelmente vestido, e com um panamá por sobre a cabeça já tomada pela precoce calvície. Ao perceber o meu espanto, declarou, tonitruante:
— Se vamos visitar a sua província, companheiro, terra de Padre Antônio Tomás e de José Alcides Pinto, o linho é sempre o tecido mais adequado.
Entrou no carro, ajustou o cinto, e pigarreou. Como a me dizer: Vamos!
Eram três da tarde, os pingos de uma chuva renitente lavavam o céu da cidade, e eu fui invadido pela saudade dos meus. “Seriam aquelas gotas d’água lágrimas daqueles que já se foram?”
Não quis dividir tal indagação com o Companheiro. Não seria, confesso, de bom tom, provocar o bom e velho Acácio (e seu belicoso agnosticismo), logo no início de nossa viagem.
Deixamos Mossoró em direção ao Ceará, ao som de Almir Satter: “Ando devagar, porque já tive pressa/ Levo este sorriso, porque já chorei demais...”
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